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Mostra no Victoria and Albert Museum tenta fugir de retrospectiva superficial e revelar diferentes aspectos da carreira de um artista que se reinventou constantementeUma fotografia foi colocada discretamente ao lado da entrada da exposição "David Bowie Is", que vendeu um número recorde de ingressos antes mesmo de sua abertura no Victoria and Albert Museum. A imagem mostra um jovem que começou a vida como David Jones, trajando um terno escuro e gravata, sentado sobre um bumbo com o nome de sua banda, "The Kon-rads". O jovem segura um saxofone com uma das mãos, enquanto a outra repousa delicadamente sobre o rosto. Os olhos observam o mundo com um misto impressionante de reserva e sedução.
A pose cuidadosamente coreografada, o rosto angelical e o olhar calculado sugerem muito a respeito daquele menino de 19 anos que viria a se tornar o deus do rock conhecido como David Bowie. É óbvia sua compreensão da linguagem corporal, da imagem e da importância da sedução – elementos que tiveram um papel fundamental na carreira de um pop star que já era um "performer" muito antes de o termo ser cunhado.
Exposição 'David Bowie Is', em Londres
Foto: AP
Exposição 'David Bowie Is', em Londres
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Exposição 'David Bowie Is', em Londres
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Exposição 'David Bowie Is', em Londres
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Exposição 'David Bowie Is', em Londres
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Exposição 'David Bowie Is', em Londres
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Exposição 'David Bowie Is', em Londres
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A ideia por trás de uma exposição sobre a vida e os quase 50 anos de carreira de Bowie é ambiciosa: como mostrar as muitas faces – a mais nova acaba de se revelar em março deste ano, com o álbum surpresa "The Next Day" – de um homem que reinventou constantemente sua persona e sua música ao longo da carreira, com uma rapidez e uma imprevisibilidade estonteantes?
Como transformar a exposição "David Bowie Is" em algo mais que uma série de artefatos, velhas capas de discos, fotografias e um grande número de roupas e vídeos? Como sugerir o apetite voraz com o qual Bowie absorveu e antecipou as correntes sociais e culturais de seu tempo?
Em vista disso tudo, a própria exposição é improvável. Bowie, de 66 anos, é famoso por ser reservado. O artista não se apresenta em público desde 2006, não dá entrevistas e parece viver uma vida quase incógnita com a filha e a esposa, a ex-modelo Iman.
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O lançamento de "The Next Day" foi uma surpresa para quase todo mundo, incluindo o Victoria and Albert Museum – "Embora ninguém acredite na gente", lamentou Geoffrey Marsh, um dos curadores da exposição, ao lado de Victoria Broackes.
Entretanto, por volta do fim de 2010, o museu recebeu um telefonema de uma pessoa ligada a Bowie. "Estávamos conversando a respeito de diversas possibilidades", afirmou Marsh, em uma das galerias da exposição, enquanto era exibido um vídeo de Bowie com um terno azul-turquesa, cantando "Life on Mars". "Então a pessoa perguntou se eu estava interessado em David."
Revelou-se que Bowie é uma dessas pessoas que não joga nada fora e, ainda melhor, que gosta de organizar tudo que não joga fora. Marsh e Broackes viajaram para Nova York e se depararam com uma coleção de 75 mil itens, organizados durante anos por um arquivista.
"O acordo é que poderíamos pegar qualquer coisa emprestada do arquivo, mas que Bowie não teria nenhuma relação com a exposição; que todos os textos seriam revisados pelo arquivista, que avaliaria se estavam historicamente corretos, mas que a interpretação dos fatos caberia a nós", afirmou Marsh.
É muito difícil dizer por que uma pessoa tão reservada quanto Bowie, que não quis ser entrevistado para este artigo, decidiu liberar seu arquivo para uma interpretação tão aberta, neste momento da vida e da carreira.
"Bowie parou há muito tempo de se apresentar e eu acho que ele não quer voltar à estrada, mas nem por isso quer ficar longe do público", afirmou Kevin Cann, autor de "Any Day Now", uma biografia que conta os primeiros anos de Bowie. "Essa é sua forma de entrar em contato e de se comunicar com o público."
Com a exposição "David Bowie Is" – conforme indica o título –, os curadores tentaram fazer algo mais complexo que uma leitura superficial de uma carreira que incluiu uma quantidade impressionante de rumos musicais e culturais. "Descubra as receitas que usa e as abandone", sugere um dos cartões da série "Oblique Strategies", de Brian Eno e Peter Schmidt, exibida na exposição. Esse pode muito bem ser o lema de Bowie.
Bowie se manteve eternamente mutável e essencialmente irreconhecível ao longo de toda a sua carreira: da encarnação sexualmente ambígua de cabelos vermelhos e fantasia espacial no álbum clássico de glam-rock "The Rise and Fall of Ziggy Stardust and the Spiders From Mars", de 1972, ao personagem Thin White Duke, inspirado nos cabarés da República de Weimar, passando pelo Pierrô surrealista do disco "Ashes to Ashes", de 1980, ou pelo mestre de todos (ou não?), coberto com a bandeira do Reino Unido no álbum "Earthling", de 1997.
"Até os Beatles, os modelos do rock se baseavam em fazer um grande sucesso e reciclá-lo até que todo mundo ficasse enjoado", afirmou o jornalista musical Jon Savage em entrevista por telefone. "Acho que Bowie pegou a ideia da mudança constante e a elevou a um novo patamar. Até então, o rock se pautava em uma ideia de autenticidade, mas Bowie acabou com isso. Dizer que era gay ao mesmo tempo em que tinha uma esposa passava a mensagem de que o que fazia era música pop e que essa é uma área em que se brinca, se experimenta e se diverte. Que o pop é um lugar que fica fora das normas da sociedade, onde se pode tentar coisas novas, de uma forma performática."
Segundo Marsh, o desafio de "David Bowie Is" foi transmitir a noção de performance e o escopo das referências culturais de Bowie. "Ele subia no palco não apenas como um ser físico, mas como um ser filosófico", afirmou Marsh, "e é difícil passar essa ideia em uma exposição".
Os curadores decidiram dividir a mostra por temas, ao invés de fazer uma divisão cronológica. A seção inicial é dedicada aos primeiros anos de Bowie e mostra fotos, discos e documentos. (Seus autores prediletos são "Kafka, Camus, Pinter, Behan, Waterhouse e Wilde", nos revela uma antiga nota biográfica.)
Contudo, o resto da exposição foi organizado em torno das fantasias, da composição, dos colaboradores e das apresentações – mostradas de forma espetacular, em salas cobertas do chão ao teto por telas de TV. A música de Bowie fica literalmente no ar e pode ser ouvida por meio de fones de ouvido utilizados pelos visitantes, que captam digitalmente as faixas de cada parte da exposição.
A experiência imersiva resultante é adequada a um artista descrito em uma entrevista telefônica com a autora Camille Paglia como "totalmente voltado aos sentidos". Paglia escreveu um artigo para o catálogo da exposição e fez uma defesa apaixonada de Bowie, afirmando que é um artista fundamental e contrário ao que chama de tendências "de textos bêbados, palavrocêntricos e corpofóbicos" do pós-modernismo.
"Ele é um produto do surrealismo, do dadaísmo e das artes modernistas", afirmou. "Bowie se baseia no corpo e se integra profundamente ao papel que interpreta. Sua tremenda virtude física, sua compreensão das fantasias e de como são uma projeção imaginativa de nossos corpos, tudo isso faz parte de sua característica mais importante: uma emotividade profunda. Estou muito feliz com o retorno de David Bowie."